Como nos descolamos da realidade?

César P. Soares, PhD
5 min readMay 16, 2021

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Como explicar as distintas “verdades” sobre aspectos relacionados à COVID-19? Em um mesmo cenário de pandemia, é possível notar não só profissionais da saúde, em conjunto com uma parcela da população, suplicarem medidas mais rigorosas para controlar a disseminação do vírus, como, ao mesmo tempo, indivíduos que ignoram a gravidade da situação. Alguns, ainda, em uma demonstração de fé, entregam-se a tratamentos ineficazes como forma de salvação.

Independente do perfil, salta aos olhos a quantidade de interpretações existentes sobre uma mesma realidade. Muitas delas conflitantes entre si. Dentre estas, e tantas outras interpretações sobre a pandemia, existe apenas uma correta? Todas estão corretas? Estas perguntas, além de abarcarem uma série de outras situações existentes na sociedade[1], expõem um cenário que parece estar se aprofundando: o nosso descolamento da realidade.

Não é necessário um grande esforço para constatar tal relativização da realidade, já que tal situação se repete em diferentes graus, sobre assuntos diversos, em uma ampla quantidade de posts de distintas plataformas eletrônicas. Há alguns anos, situações similares passaram a ocorrer, também, entre representantes de instituições políticas do Estado[2] e [3].

Essas ocorrências narradas “des-cobrem” a fragilidade da razão humana. Constatação que convoca todos nós, ou pelo menos aquelas pessoas preocupadas com um futuro cada vez mais presente[4], a buscar um esclarecimento sobre o motivo e como ocorre essa distorção na nossa forma de conhecer o mundo que nos circunda. Em outras palavras, parece ser importante tornar claro os limites da nossa razão, já que isso poderia evitar uma série de problemas e confusões que ocorreram, estão ocorrendo e possivelmente irão ocorrer.

Com o intuito de entreabrir, ainda que pouco, as janelas deste quarto escuro para que a luz do mundo exterior ilumine o nosso arredor, apresento sucintamente o conceito de ilusão dialética de Kant, já que este, na minha interpretação, contempla o significado do título do presente texto, assim como da nossa situação atual: a saber, o nosso descolamento da realidade[5].

Para a compreensão do conceito referente à “ilusão dialética”, é importante notar que a realidade que se apresenta a cada um de nós, no dia a dia, não é encarada como uma informação pura captada pelos nossos sentidos — visão, audição, tato, paladar e o olfato –, mas sim o resultado da unificação dos dados do sentido a partir da imposição de esquemas conceituais advindos da nossa mente. Os esquemas conceituais, portanto, condicionam a nossa experiência.

Cabe destacar que o uso destes esquemas conceituais, quando ocorrido de forma afastada da experiência — ou, em outras palavras, desconectado de aspectos não conceituais — traz uma série de problemas de entendimento. Ante a forma inerentemente incompleta e insatisfatória que o conhecimento empírico se apresenta para nós, ao utilizar os seus esquemas conceituais, o ser humano tende a se apartar da realidade. Com o intuito de alcançar um conhecimento completo e irrefutável, a nossa mente se “descola” das limitações empíricas. É a partir deste movimento, marcado apenas pela confrontação de esquemas conceituais, que a razão se torna dialética.

As ilusões dialéticas ocorrem, portanto, como um fruto da razão pura. Quando esta, irresistivelmente, deixa de ser restringida pela experiência. Descambando, por um lado, para uma aceitação de seres e ideias absolutas, inquestionáveis, e, em outra direção, para a relativização radical. A razão alicerçada em sua própria sombra, apresenta-se como uma fonte inesgotável de armadilhas que comprometem o seu próprio funcionamento. Apresentando-se de forma pura, sem o amparo da realidade, configura-se como um manancial de ilusões.

Esse movimento “gangorra”, característico da ilusão dialética, marcado pela oscilação entre uma percepção absoluta e outra de relatividade radical, parece ser característico na atualidade. Um caso emblemático, no contexto atual, envolve o apego na fé religiosa como o único caminho para a salvação e alívio da sensação de morte iminente imposta pela pandemia e, ao mesmo tempo, a relativização no uso da máscara, medicamentos, entre outros. Destaca-se, neste caso, a impossibilidade de alterar a forma que essas pessoas compreendem um fato específico sobre a realidade. Invocar a ciência não apresenta nenhum efeito.

O print abaixo evidencia um exemplo de relativização radical da realidade, ao expor mensagens “desmentindo” as evidências científicas sobre o uso de medicamentos na pandemia.

Tweet sobre medicamentos ineficazes (COVID-19).

Observar o nosso arredor a partir do conceito de ilusão dialética ajuda a iluminar a enxurrada de convicções absurdas defendidas ultimamente. A situação de “descolamento da realidade” que a nossa razão se encontra atualmente, gera as ilusões nas quais nos enredamos diariamente: ao invés de notar a nossa inclinação em tentar, a todo custo, dar coerência ao mundo que nos circunda, preferimos acreditar que encontramos os alicerces fundamentais dos aspectos da realidade que nos angustiam.

Como lidar com estas situações em que acreditamos, ou estamos inclinados a acreditar que algo é verdadeiro, quando nitidamente é falso? Buscar um suporte não conceitual, na experiência, que nos desvie dessa espiral ilusória, parece ser importante para lidar com estas situações elencadas. A forma que devemos agir para que permaneçamos “colados na realidade”, com o intuito de estabelecer limites para a nossa razão, contudo, é a incógnita que tanto preocupa o autor deste texto. Ante a necessidade de profundas mudanças em diferentes esferas da sociedade, não só por conta da pandemia, mas, também, da crise ambiental planetária que se intensifica a cada dia, o rompimento com essas ilusões parece ser crucial.

Notas:

[1] Casos recentes podem ser associados à decisão do STF, por exemplo, em relação ao Deputado Federal Daniel Silveira. Enquanto esta instituição federal decretava a sua prisão, simultaneamente, diversos posts, inclusive de deputados, afirmavam sobre o mesmo fato uma interpretação oposta.

[2] Não há a intenção de contestar o caráter conflitivo existente na esfera política. Este tem um papel importante. Destaca-se, aqui, a banalização das divergências, apoiando-se em conceitos que se descolam completamente da realidade, como desenvolvido nos parágrafos seguintes.

[3] Este contexto está presente em grande parte dos países atualmente. No Brasil, este cenário começou a aparecer com maior intensidade no período em que ocorreu o impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff. Tendo se intensificado até os dias de hoje.

[4] Me refiro, aqui, à crise ambiental planetária.

[5] Esse texto não tem o objetivo de exaltar os pontos adequados ou inadequados da filosofia kantiana, mas trazer conceitos que contribuam para a compreensão da situação da nossa razão na atualidade.

Bibliografia utilizada como inspiração e suporte para o texto:

FOGELIN, R. Andando na corda bamba da razão: A vida precária de um animal racional. Alameda Casa Editorial, 2016. (Especialmente o Capítulo 3 — A Razão Pura e suas Ilusões).

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

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César P. Soares, PhD
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Written by César P. Soares, PhD

Constantly working with theoretical/practical topics that can contradict each other in the face of the contemporary global socioenvironmental crisis.

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